Este blog é uma extensão do Portal de Fernando Santiago dos Santos, e divulga textos e outros materiais sobre arte, educação, história da ciência, biologia e muito mais.
sexta-feira, dezembro 22, 2006
Livro sobre História da Ciência e Ensino
SUMÁRIO
Introdução: A história das ciências e seus usos na educação, Roberto de Andrade Martins.
Parte I – Epistemologia
1. Notas sobre o ensino de história e filosofia da ciência na educação científica de nível superior, Charbel Niño El-Hani.
2. Breves considerações sobre a natureza do método científico, Antonio Augusto P. Videira.
3. O dogmatismo científico de tradição materialista, Osvaldo Pessoa Jr.
4. Sobre continuidades e descontinuidades no conhecimento científico: uma discussão centrada na perspectiva kuhniana, Luiz O. Q. Peduzzi.
Parte II – Física
5. Interações na física: ação à distância versus ação por contato, André K. T. Assis.
6. O ensino da termodinâmica por meio da prática social, Marcelo Luis Aroeira, Rosella, João José Caluzi, Zenaide Prado Lyra e Silva.
7. Pierre Curie e a simetria das grandezas eletromagnéticas, Cibelle Celestino Silva.
8. Do mundo fechado da astronomia à cosmologia do universo fechado do big bang: revisitando novos dogmas da ciência astronômica, Marcos Cesar Danhoni Neves.
9. A maçã de Newton: história, lendas e tolices, Roberto de Andrade Martins.
10. Isaac Newton, as profecias bíblicas e a existência de Deus, Thaís Cyrino de Mello Forato.
11. A indução eletromagnética na sala de aula, Valéria Silva Dias.
Parte III – Biologia
12. A botânica no ensino médio: será que é preciso apenas memorizar nomes de plantas?, Fernando Santiago dos Santos.
13. A história da ciência e o ensino da genética e evolução no nível médio: um estudo de caso, Lilian Al-Chueyr P.Martins & Ana Paula O. P.Moraes Brito.
14. Ensino do sistema sangüíneo humano: a dimensão histórico-epistemológica, Nadir Castilho Delizoicov.
15. História do dna e educação científica, Nadir Ferrari & Neusa Maria John Scheid.
16. Razão, experiência e imaginação na ciência – o caso de Charles Darwin, Anna Carolina K. P. Regner.
Parte IV – Outros
17. Alguns aspectos da teoria da matéria: atomismo, corpuscularismo e filosofia mecânica, Luciana Zaterka.
18. Equações algébricas: uma abordagem histórica sobre o processo de resolução da equação de 2º grau, Sergio Nobre.
O escândalo dos Doutores
Abro meu e-mail e deparo com uma chamada intrigante: "A PUC-SP [Pontifícia Universidade Católica] não discrimina doutores". Quem envia a mensagem é a Assessoria de Comunicação Institucional (Acipuc): para meu espanto, fico sabendo que muitas faculdades particulares se recusam a contratar professores com título de doutor ou, mesmo, os despedem logo após a defesa. E por quê? Porque um doutor ganha alguns reais a mais que um mestre, e, este, mais do que um bacharel, licenciado ou especialista.
Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2003200504.htm
21 março 2005.
Que tipo de professor eu sou hoje?
Minha experiência em sala de aula começou muito cedo. Aos doze anos de idade (isso mesmo, doze anos!), vi-me pela primeira vez às voltas com alunos, lousa e giz. Eu morava em São Paulo, no Bairro da Saúde, e participava das atividades religiosas de um convento. Fiz minha catequese e minha primeira comunhão lá. Uma das freiras encarregadas do ensino da catequese analisou minha participação no curso de catecismo e, um certo dia, convidou-me a participar de um projeto que o convento estava iniciando. Tal projeto envolvia o treinamento de futuros catequistas mirins: pré-adolescentes e adolescentes que tivessem um mínimo de “aptidão didática” poderiam ser selecionados para iniciar experiências de ensino no catecismo. Eu fui um dos escolhidos. Minha primeira turma de alunos tinha, então, cerca de sete crianças de 7 a 9 anos de idade. Eu, doze. Infelizmente, não guardei nenhum caderno de anotações das aulas de catecismo que eu ministrava no convento. Não me lembro dos rostos dos meus primeiros alunos, nem de seus nomes... um fato, porém, marcou profundamente este período, profícuo em experiências, receios, erros e alegrias: a “formatura” dos alunos na catequese mirim foi uma noite inesquecível! Nesta noite de formatura, os catequistas mirins receberam do pároco um crucifixo dourado; os alunos que estavam se “formando”, um crucifixo menor, prateado. Choro dos pais, emoção da platéia. Este evento didático marcou seriamente minhas futuras escolhas profissionais.
Aos treze anos de idade, meu pai foi transferido de São Paulo para Santos. Mudança de endereço, período de adolescência, adequações de corpo e de vida nova. Senti muito medo e muita solidão. Refugiando-me dos muitos receios que pairavam sobre minha cabeça adolescente em transformação e da lacuna deixada pela falta de meus vizinhos paulistanos – com os quais aprendi a viver cada dia de minha infância –, atirei-me aos livros. Eu sempre gostei de ler, sempre gostei de tentar viajar pelo mundo, pelas culturas e pelas línguas dos povos através dos livros, da música e das imagens. Nesta época, com os meus quatorze anos de idade, eu já havia lido todos os 15 volumes da Enciclopédia Delta Internacional que meu pai comprara com muito esforço, ao sair de São Paulo para Santos (ele nunca me falou nada a respeito, mas creio que a enciclopédia serviu-lhe, inconscientemente, como uma retratação pela mudança de residência que, no fundo, marcou negativamente minha pós-infância; pode ter sido, a meu ver, uma maneira de limpar seu mea culpa, mea maxima culpa...). Talvez, ainda, como um legado da infância tardia e da experiência bem-sucedida no convento, eu li, também, os 77 livros da Bíblia católica. Comecei a estudar japonês e inglês. Lia, lia, lia; lia muito, um pouco de tudo, todo dia.
A leitura marcou minha adolescência inteira. A paixão pela leitura impulsionou-me a devorar tudo que se relacionava com o saber, com o conhecimento, com a cultura. Passei a estudar, por volta dos dezesseis anos, música teórica de forma autodidata. Nesta época, estava no nível avançado do curso de língua inglesa. Recebi, mais uma vez, uma proposta desafiadora e que marcaria, agora, minha futura vida docente como um divisor de águas: a diretora da escola Fisk onde eu estudava convidou-me, no final de 1987, para dar aulas de inglês no curso Básico, para uma turma de iniciantes. Foi um convite aceito imediatamente. Há muito eu já vinha pensando seriamente em ensinar inglês a alunos em aulas particulares; o convite da diretora caiu-me como uma luva perfeita. Digo que este evento foi um divisor de águas porque, na verdade, deste ponto em diante a minha relação com a sala de aula passou a ser visceral: da sala de aula, obtive meu sustento durante todo o período pré-vestibular; da sala de aula, também, paguei todas as minhas despesas enquanto morador de repúblicas em Campinas (estudava em período integral na Unicamp e, à noite e aos sábados, dava aulas de inglês, paralelamente a serviços esporádicos de tradução que me eram oferecidos por diversos clientes), comprei meu primeiro carro, investi em cursos, viajei, participei de congressos e fiz um sem-fim de coisas que ocupariam muito espaço nesta página caso fossem relatadas uma a uma.
Acabado o curso de Ciências Biológicas na Unicamp (Bacharelado e Licenciatura Plena), fui convidado a coordenar os cursos de inglês da escola CNA de Limeira. Mais um desafio, mais um período de aprendizagem, compartilhamento de vivências e estudos. Aprendi muito sobre relações interpessoais, sobre psicodrama, sobre como melhorar a comunicação e a empatia com o público. Participei de diversos workshops sobre auto-estima, relações no trabalho, disciplina e motivação em sala de aula. Dois anos depois, já de volta a Santos, inicio minha carreira profissional como professor de Biologia e Ciências, em duas escolas particulares da cidade. Foram duas experiências muito interessantes. Apliquei parte das teorias que havia vivenciado nos workshops (principalmente as que se referem à interatividade professor-aluno, ensino-aprendizagem, relações interpessoais e comunicação pro-ativa) durante as aulas nestas duas escolas. Certamente errei muito, devo ter repousado parte das aulas em pensamentos espontâneos de anos e anos de ensino de línguas estrangeiras (muitas vezes calcado simplesmente em saberes empíricos), devo ter tido inseguranças e deslizes. Mas, olhando com calma neste passado nem tão muito distante assim, vejo que o balanço é muito positivo.
Em 2000, tomo coragem e inicio o Mestrado em História da Ciência, na PUC-SP. Novamente, um desafio grandioso que eu pretendia abraçar com unhas e dentes. Trabalhar em duas escolas privadas e em uma unidade escolar na Prefeitura Municipal de Cubatão – além de acompanhar o Mestrado – foi um caminho árduo, permeado por dezenas de noites passadas sem dormir e finais de semana passados em frente ao computador, rodeado de livros, anotações, xerox de artigos e capítulos de livros. A escolha pela História da Ciência foi baseada em inquietações que me acompanhavam há vários anos: por que a maioria dos professores, e também dos materiais didáticos utilizados em sala de aula, fundamenta-se invariavelmente em uma análise anacrônica, linearista e pontualística da Ciência? Por que se insiste em mostrar aos alunos que a Ciência é feita de grandes nomes geniosos que descobrem as coisas “por acaso”, por insights milagrosos e teorias surgidas do nada? Por que os alunos, em geral, não gostam de Biologia? Por que a Botânica é encarada, por alunos e professores de Biologia, como algo meramente decorativo, chato e difícil de ensinar/aprender? Estas perguntas não poderiam ficar sem respostas. Eram fundamentais demais para mim. Achava que os professores de Ciências, como eu, deveriam tentar contextualizar suas aulas, tornando-as mais realistas, mostrando aos alunos que a Ciência não é coisa de lunático, de gênio tresloucado ou de descobertas únicas e isoladas. Por esta época (2002), comecei a questionar profundamente minhas aulas, chegando a achá-las, depois de várias autoavaliações, sérias demais, preocupadas demais com a contextualização histórica, em detrimento das competências e habilidades que são necessárias ao aluno de hoje.
Nem todas minhas inquietações foram solucionadas durante o Mestrado. Para buscar novas saídas, e aprofundar os conhecimentos em Educação, busquei o Doutorado na Faculdade de Educação da USP. Obviamente, nem todas as respostas foram alcançadas. Ainda há, com certeza, um longo caminho pela frente. Mas posso assegurar, pelo menos até agora, que estou no caminho certo. Tentar responder a pelo menos uma de minhas eternas perguntas – O que é que faz um professor ser um bom professor, e o que faz um aluno ser um bom aluno? – seria um trunfo e a sensação de ter trilhado o caminho certo.
Chegamos ao ponto crucial desta reflexão. O que fez com que eu me tornasse o professor que sou hoje? Diria que uma gama de fatores diferentes poderia ser uma resposta satisfatória. Estes fatores incluem, entre outras coisas, uma boa dose de empirismo; a vontade de compartilhar conhecimentos e diferentes saberes; uma vocação talvez “inata” (será que posso ousar entrar neste aspecto, o do talento natural que é tão discutido em várias instâncias no meio psicopedagógico?) para ensinar; a eterna insatisfação com o status quo da sociedade e do mundo; a paixão pelos livros, pela cultura, pelas línguas, pela história e pela filosofia; o desejo sempre latente de querer aprimorar-me e formar mentes abertas e críticas; o sentimento quase jesuítico, manifestado lá no fundo da alma, de acompanhar o desenvolvimento dos alunos, de vê-los progredir em inteligência, em ânsia por mais conhecimentos; enfim, uma eterna e jovial vontade de entender o modus operandi da mente humana, de saber conhecer seus mistérios e saber que, ao ensinar, estou contribuindo para a formação de pessoas mais comprometidas com a humanidade, mais críticas e responsáveis para consigo mesmas e para com o mundo.
Relendo tudo o que acabei de escrever, acho que poderia considerar-me utópico. Mas, perdoem-me se estiver obcecado demais por esta idéia: quem pode tirar de nós o sonho? Meu sonho, com a cabeça bem erguida e o semblante lá nas nuvens, mantém meus pés, porém, bem fincados no chão. O sonho, a utopia e a vontade de querer abraçar o mundo com as mãos mantém-me vivo, esperançoso de que ainda há muito que mudar, de que ainda há muito a se fazer nesta Terra tão caótica. E ensinar foi a maneira que achei para acalentar e tentar alcançar este sonho.
quarta-feira, dezembro 13, 2006
Qual é a importância da arborização urbana?
Houve tempos em que era praxe o passeio ao final da tarde, pelas veredas das cidades, para a observação das árvores e dos arbustos em pleno florescimento. Homens e mulheres sabiam, muitas vezes empiricamente, quando a paineira dava flores, quando o ingá gerava seus doces frutos, ou quando as primaveras e outras espécies comuns em nossas cidades sofriam alguma transformação em seus ciclos de vida. Muitas goiabeiras foram palco para as mais diversas brincadeiras infantis. E, convenhamos, quem não subiu em alguma árvore, por menor que tenha sido, para apanhar amoras, abacates, ou as referidas goiabas repletas de bicadas de pássaros? Nossas avós talvez relembrem aqueles dias em que sentir o aroma de flores constituía fato normal na vida de qualquer cidadão.
NOTAS:
(1) Como exemplos de espécies nativas do Brasil, podemos citar a goiabeira (Psidium guajava, da família das mirtáceas) e a pindaíba (Xylopia brasiliensis, da família das anonáceas); entre as inúmeras espécies exóticas que se adaptaram com êxito em nossas terras, já fazendo parte da flora brasileira, podemos citar a azaléia (Rhododendron, com várias espécies, da família das ericáceas) e as mangueiras (Mangifera indica, da família das anacardiáceas).
(3) O flamboyant pertence ao gênero Delonix, uma leguminosa cesalpinioídea (da mesma família das conhecidas senas, cássias e patas-de-vaca da nossa flora).
Retrospectiva 2005: apenas Destruição?
Final de ano. As famosas e costumeiras retrospectivas na TV. Os melhores e os piores momentos de 2005, as tragédias que assolaram nosso planeta, fios tênues de esperança nos rostos de pessoas que perderam casa e parentes nas catástrofes do ano que acabou de se findar. Momentos de reflexão e perplexidade.Nos últimos minutos de 2005, rendi-me à massificação global da telinha e fiquei algum tempo assistindo à seqüência de imagens que mostravam tornados, enchentes, tempestades de neve, queimadas, cortes de árvores, rios secos... morte. Morte de crianças, idosos, mães. Morte de animais e de plantas. Morte por todo lado.
Interlocutio
Interlocutio é o movimento que me impulsiona em meio à solidão das multidões. Passos de gente que vai e vem, carregando histórias de vida fascinantes e impenetráveis. Olhares que quase não se entreolham, que não demonstram interesse em transpor as gigantescas barreiras interpessoais da cidade que engole a tudo e a todos.
No metrô abarrotado, nunca pensei que fosse tão real a sensação de solitude em meio a tantas pessoas. Uma sensação real, penetrante e ameaçadora. Caminho entre corpos de olhares amorfos, distantes em seus problemas e angústias. Interlocutio. Ouso adivinhar o que lhes corre pelo pensamento. Medo, talvez. Quem sabe indiferença? Sonhos, visões, vontade de viver maior que a certeza da morte que ronda. Serão as mesmas preocupações que tiram o meu sono nos melhores momentos da madrugada? Nunca irei saber. Não há com quem compartilhar minhas inquietações e curiosidade sem fim.
A solidão não poupa dias, capacidade física, disposição espiritual e estado de alma. Ela é um ente invasivo, que toma posse de cada pedaço do cerne vivo.
A alma viaja na velocidade do pensamento. A solidão duplica essa velocidade.
Os passos vêm e vão, carregando tantas histórias. Interlocutio. Dialogo com minhas próprias histórias, fragmentadas em tantos dissabores, aprendizados, decepções e vitórias. Dialogo com minha anima, passiva e latente. Temerosa para se manifestar e derrubar meu animus racional. A solidão é maior que a racionalidade?
Interlocutio. Mais passos. Mais inquietações.
No meio do vagão de metrô lotado, um menino, solto, sem medo de mostrar um sorriso tão grande quanto sua ingenuidade infantil. Sem medo de ser livre, sem medo de ser só. Sem medo de ser tão-somente um menino. A solidão não o põe em grilhões, não o trancafia em traumas, não o faz virar um notívago em busca de respostas para a existência. Sua solidão o faz ser mais forte. A minha me torna mais fraco, mais dependente. Mais doente. Mais carente de mim mesmo.
O menino,
tão livre no vagão do metrô,
manteve-me preso por uma eternidade.
Interlocutio...
Escola, Aids e Adolescentes
01/12/2006 (Publicado também na Revista Eletrônica ArScientia: http://www.arscientia.com.br/materia/ver_materia.php?id_materia=298)
Todo mundo sabe que a Aids mata. Todo mundo sabe que a Aids pode ser passada de uma pessoa para outra através de sexo não seguro. Os adolescentes e os jovens também sabem disto tudo. Será?
Falar de Aids parece ter se tornado um senso comum. Estatísticas apontam aumento ou queda dos números de indivíduos contaminados, número de óbitos, co-infecção de Aids com outras doenças virais e bacterianas etc. Propagandas de preservativos brotam em várias situações da vida cotidiana. Fala-se sobre Aids do Ensino Infantil ao jogo de bocha no clube da terceira idade. Aids/DSTs faz parte dos Parâmetros Curriculares Nacionais como um tema transversal a ser trabalhado com os alunos em sala de aula, preferencialmente em todas as disciplinas. O medo da Aids abriu, de certa forma, um diálogo mais aberto sobre sexo em sala de aula a partir de 1985 (1). A Aids colocou em xeque muitos mitos e quebrou paradigmas sociais. É inegável o impacto que a Aids causou na sociedade pós-década de 80.
O questionamento do início do texto em relação ao conhecimento que adolescentes e jovens brasileiros realmente têm sobre a Aids gerou, em mim, uma inquietação muito grande. Como educador em uma escola de Ensino Fundamental II na rede municipal de Cubatão-SP (2), percebo que ainda existe uma grande parcela de alunos que realmente não conhecem a Aids. Em seus diálogos dentro e fora da sala de aula, nos corredores da escola e no pátio, percebo que outros temas preenchem suas dúvidas e anseios diretos, como marcas de tênis, locais certos para colocação de piercings e tatuagens, namoros, bailes funk e points de baladas. A gravidez entre adolescentes dos 13 aos 17 anos é muito comum na unidade escolar e, curiosamente, os alunos não demonstram receios em engravidar ou contaminar-se com Aids ou outras DSTs. Partindo da hipótese de que muitos alunos realmente desconhecem a Aids, decidi fazer um levantamento de dados quantitativos e, a partir daí, realizar uma análise qualitativa. Desde 2004, realizo, anualmente, um questionário que é respondido anonimamente por alunos de 7ª séries (faixa etária média de 14,3 anos). Este questionário inclui as seguintes perguntas:
1. Idade
2. Sexo (M/F)
3. Você sabe o que é uma DST? (sim/não)
4. Cite alguma DST que você conhece:
5. A Aids é uma doença transmitida por: (vírus/bactéria)
6. Pode-se pegar Aids: (pelo ar/pela água/pelo beijo/em banheiros/pelo sexo/por um abraço/pelo sangue/em piscinas)
7. Em sua opinião, a camisinha funciona em 100% dos casos? (sim/não)
8. Você tem medo da Aids? (sim/não)
9. Você conhece alguém que tem Aids? (sim/não)
10. Você tem (ou teve) familiares com Aids? (sim/não)
11. Dos assuntos a seguir, marque aquele que você considera mais importante: (aids/gravidez/tatuagens ou piercings/baile funk/balada/drogas
12. Você faz sexo regularmente? (sim/não)
13. Você usa camisinha? (sim/não)
14. Escreva uma frase sobre Aids:
15. O que você faria se soubesse que está com Aids?
O universo amostral é 58% feminino contra 42% masculino (pergunta 2). Em relação à pergunta 3, 47% das meninas responderam que sabem o que é uma DST; entre os meninos, o desconhecimento acerca destas doenças é de 62%. Citações de algumas DSTs (pergunta 4) apareceram em apenas 23% dos questionários, de ambos os sexos (3). Praticamente todos os entrevistados (92%) responderam que a Aids é transmitida por vírus (pergunta 5). A pergunta 6 gerou dados muito preocupantes, que revelam, de certa forma, o grau de desconhecimento dos entrevistados em relação à forma de contaminação da Aids: desconsiderando-se gênero, 13% responderam que se pode pegar Aids pelo ar; 7% responderam que a Aids pode ser transmitida pela água; transmissão por beijo e abraço apareceu em 34% dos entrevistados; não houve resposta nos itens banheiro e piscinas; 43% dos entrevistados optaram pela opção sexo; apenas 3% responderam que a Aids pode ser transmitida pelo sangue.
Em relação ao funcionamento da camisinha (pergunta 7), há diferenças consideráveis entre meninos e meninas: 78% dos meninos afirmaram que a camisinha funciona em 100% dos casos; apenas 31% das meninas acham que a camisinha funciona em 100% dos casos. Já a pergunta 8 gerou 100% de respostas afirmativas em relação ao medo da Aids.
Do total de entrevistados, apenas 28% afirmaram que conhecem alguma pessoa com Aids (pergunta 9). Curiosamente, 42% do total de alunos responderam que têm ou tiveram algum familiar com Aids.
A pergunta 11 corroborou, de certa forma, minhas observações sobre as maiores preocupações e anseios dos jovens e adolescentes durante suas conversas dentro e fora do ambiente da sala de aula. Aqui vale a pena ressaltar as diferenças de gênero: entre as meninas, o assunto que mais interessa é a gravidez (54%), seguido de baile funk (22%). Os meninos responderam que o assunto mais importante é o baile funk (57%), seguido de drogas e tatuagens/piercings (ambos com 31%). Entre os meninos, 68% afirmaram que fazem sexo regularmente, contra 48% das meninas (pergunta 12). Surpreendentemente, os que afirmaram fazer mais sexo são os que menos utilizam a camisinha: 54% dos meninos afirmaram não utilizar o preservativo durante suas relações sexuais. A porcentagem de meninas que afirmaram usar o preservativo foi de 78%.
As duas últimas perguntas obviamente não serão tabuladas aqui, já que incluem respostas dissertativas. Algumas respostas, entretanto, foram selecionadas devido, entre outros aspectos, ao teor fortemente impregnado de desconhecimento a respeito da Aids. Em relação à pergunta 14, foram selecionadas oito respostas:
Aids é uma coisinha feia e pequena que a gente pega se transar com o namorado, mas não com o marido. Aids não é coisa boa nem ruim, depende se você usa ou não camisinha. Eu acho que a Aids é um bichinho inventado no laboratório e que veio pra confundir o sexo. Beijar de leve não transmite a Aids, mas beijar de beijo de língua demorado pode. Tenho aftas na boca, e minha mãe disse que eu posso pegar Aids se comer com a mesma colher de outra pessoa. O bichinho da Aids é muito matuto, ele consegue entrar no sangue e sair pelo esperma. Se o cara ejacular e você lavar a boca logo em seguida, não pega Aids. Eu acho que a Aids já foi pior, o Brasil tem pesquisa boa pra acabar com a Aids no mundo.
Em relação à pergunta 15, selecionei seis respostas:
Eu não ia fazer nada porque não acredito que eu pegasse Aids. Eu matava quem tivesse passado ela pra mim.Não sei, mas eu acho que eu ia querer transar sem camisinha pra passar o bichinho pra outras pessoas. Eu ia querer que as outras pessoas também pegassem. Eu ia sumir no mundo porque não ia fazer minha mãe sofrer se ficasse sabendo dessa pouca-vergonha que eu faço com meu namorado. Acho que ia me matar porque ia ficar muito feia.
Notas:
(1) O ano de 1985 marca, no Brasil, o início das campanhas informativas sobre a Aids em nível de mídia geral, incluindo informações do Ministério da Saúde veiculadas na televisão.
(2) Esta escola situa-se na periferia do município de Cubatão (Baixada Santista) em uma área aterrada em manguezal. Grande parte dos alunos é de origem nordestina direta (nascidos em estados nordestinos ou filhos de migrantes nordestinos atraídos para a Baixada Santista durante as obras de construção das pistas das rodovias Anchieta e dos Imigrantes), e mais da metade mora em palafitas ou em barracos sobre áreas de manguezais.
(3) As doenças mais citadas foram gonorréia e sífilis.
Comida Made in Brazil... será?
Nosso país é privilegiado nesta arte. O território, o clima e as diferenças regionais fazem da nossa culinária um grande ateliê gastronômico, em que nuanças fantásticas de gosto perfilam na enorme galeria de preferências nacionais. A miscigenação que transformou nosso povo na maior mistura étnica do mundo também alcançou a mesa, a partir do século XVI(1): azeites mediterrâneos amalgamaram-se ao óleo de coco e ao azeite de dendê, ervas finas e temperos exóticos deram toque especial às raízes e sementes da terra brasílica, e uma infinidade de frutos, sementes, legumes e hortaliças oriundos do Velho Mundo mesclaram-se soberbamente às benesses da nossa terra.
Desde seus primeiros contatos com os habitantes silvícolas do Novo Mundo, os europeus (particularmente portugueses e espanhóis, no nosso caso) tomaram contato com alimentos muito diferentes daqueles com os quais estavam acostumados a saborear em suas mesas européias, especialmente os de origem vegetal. O estranhamento inicial da nova flora é refletido pela maneira como descreviam as frutas, animais e demais componentes da nossa flora: a batata, por exemplo, era conhecida como “maçã da terra”, e o tomate, de “maçã de ouro”(2) (aliás, o tomate é um produto da terra americana que chegou no continente europeu somente em fins do século XVI. Fico imaginando como deveria ser a macarronada italiana sem o molho de tomate!). Assim, nesse ir-e-vir de jesuítas, colonizadores e conquistadores, plantas medicinais e alimentícias cruzaram o Atlântico em viagens de mão dupla, incrementando as mesas e sincretizando sabores.
E cá estamos nós, quatrocentos e poucos anos depois dessas primeiras experiências culinário-culturais. O convite, agora, é para que façamos uma pequena análise do que geralmente consumidos aqui no Sudeste(3). Vamos começar com as frutas. Boa parte dos alimentos frugais que geralmente consumidos não é, definitivamente, nativa do Brasil: pêras, maçãs, uvas, laranjas, mexericas, bergamotas, mangas, abacaxis, melancias, melões, goiabas, pêssegos, abacates, limões, nectarinas, figos, morangos, nêsperas, ameixas pretas, jabuticabas, cocos, bananas... Desta lista, você saberia dizer quantas são genuinamente brasileiras ou sul-americanas? Apenas as goiabas, as jabuticabas e os abacates, acredite se quiser. O cardápio de frutas aqui no Sudeste é majoritariamente europeu (pêras, maçãs, uvas, pêssegos, nectarinas, morangos), com salpicos de frutas oriundas do Oriente Médio (melões, melancias, mexericas, limões, laranjas, bergamotas) e da Ásia (mangas, abacaxis, cocos, bananas, figos, ameixas pretas). É, caro leitor, nem a banana escapou da lista dos importados! A verdade é que muitas mudas trazidas pelos jesuítas da África, Europa e Ásia encontraram condições favoráveis para sobrevivência aqui no Brasil. Algumas tornaram-se espontâneas, portanto muita gente acha que o coco, a manga e a banana, por exemplo, são frutas tipicamente brasileiras(4).
Se analisarmos o que comemos como “saladas” (hortaliças, legumes e raízes), a lista dos importados também não é pequena. Pasme: alface, acelga, rúcula, beterraba, cenoura, agrião, salsa, salsinha, tomilho, manjericão, manjerona, alecrim, gengibre, nabo, rabanete, chicória não são nativos do Brasil! Ah, sim, você come inhame, cará e mandioca? Bem, estes são definitivamente made in Brazil. Também são americanos (não necessariamente brasileiros) o tomate e a batata (que, muito indevidamente, foi batizada de “batata-inglesa”... os ingleses nunca comeram batatas antes do século XVI! Para pensar: como deveria ser a comida alemã, que atualmente combina batata com praticamente qualquer coisa, há quinhentos anos? Einsbein(5) com purê de batata não estaria no menu alemão, certamente...). Cereais? Bem, aqui caímos, então, em um cosmo totalmente xenófobo: não são do Brasil o trigo, o centeio, o arroz, o milho (apesar de ser sul-americano), a aveia e o sorgo. Quer arrematar com um bom cafezinho? É, a Coffea arabica, como o próprio nome indica, não nasceu aqui em terras tupiniquins.
Em plena época natalina, nada mais apropriado que nozes, avelãs, damascos, uvas-passa... Tudo exótico, importado, para combinar com Santa Claus, tão genuinamente brasileiro quanto o bacalhau, o salmão e o peru. Se você quiser optar por uma ceia com produtos brasílicos de origem, pode incluir açaí, cupuaçu, umbu, cajá e carne de cateto. Todos estes com o selo made in Brazil genuíno. E... bon apetitte!
Notas:
(1) A vinda dos primeiros portugueses ao Brasil e, particularmente, a chegada dos jesuítas em meados do século XVI, foram fatores importantes para o trânsito de alimentos entre Europa, África e Ásia e o continente americano.(2) Algumas referências interessantes a este respeito podem ser encontradas em vários relatos. Selecionei a seguinte bibliografia:
BELTRAN, Maria Helena Roxo. O europeu diante da Flora do Novo Mundo. In: ALFONSO-GOLDFARB, Ana Maria; MAIA, C. A. (org.). História da Ciência: o mapa do conhecimento. Rio de Janeiro/São Paulo: Expressão e Cultura/Edusp, 1995 (Coleção América: Raízes e Trajetórias, vol. 2);
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997;
DEAN, Warren. A botânica e a política imperial: introdução e adaptação de plantas no Brasil colonial e imperial. São Paulo: IEA/USP, 1992 (Série História das Ideologias e Mentalidades, Coleção Documentos, vol. 1);
FATUMBI, Pierre Verger. Ewé: o uso das plantas na sociedade iorubá. São Paulo: Companhia das Letras, 1995;
FRAGOSO, J. Discurso de las cosas aromáticas, árboles y frutales, y de otras muchas medicinas simples que se traen de la India Oriental, y que sirven al uso de la medicina. Madri: Francisco Sánchez, 1572;
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980;
SANTOS, Fernando Santiago dos. A Botânica no livro didático do Ensino Médio: apenas memorização de nomes?. In: SILVA, Cibelle Cestino (Org.). Estudos de História e Filosofia das Ciências: subsídios para aplicação no Ensino. 1 ed. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2006.
SOUSA, J. S. de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 2001 (Coleção Reconquista do Brasil, 2ª série, v. 221);
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
(3) A região Sudeste foi a única considerada neste artigo por ser o local de nascimento e habitação do autor, que não ousaria falar da culinária de outras partes deste imenso país.(4) Em Botânica, a palavra espontânea designa plantas que, adaptadas a um ambiente propício e em clima favorável, conseguem desenvolver-se e crescer de forma natural, embora estas plantas possam ser exóticas (ou seja, não-nativas do local).
(5) Este é um prato alemão à base de joelho de porco, normalmente acompanhado de purê de batatas ou grão de bico.