Nosso país é privilegiado nesta arte. O território, o clima e as diferenças regionais fazem da nossa culinária um grande ateliê gastronômico, em que nuanças fantásticas de gosto perfilam na enorme galeria de preferências nacionais. A miscigenação que transformou nosso povo na maior mistura étnica do mundo também alcançou a mesa, a partir do século XVI(1): azeites mediterrâneos amalgamaram-se ao óleo de coco e ao azeite de dendê, ervas finas e temperos exóticos deram toque especial às raízes e sementes da terra brasílica, e uma infinidade de frutos, sementes, legumes e hortaliças oriundos do Velho Mundo mesclaram-se soberbamente às benesses da nossa terra.
Desde seus primeiros contatos com os habitantes silvícolas do Novo Mundo, os europeus (particularmente portugueses e espanhóis, no nosso caso) tomaram contato com alimentos muito diferentes daqueles com os quais estavam acostumados a saborear em suas mesas européias, especialmente os de origem vegetal. O estranhamento inicial da nova flora é refletido pela maneira como descreviam as frutas, animais e demais componentes da nossa flora: a batata, por exemplo, era conhecida como “maçã da terra”, e o tomate, de “maçã de ouro”(2) (aliás, o tomate é um produto da terra americana que chegou no continente europeu somente em fins do século XVI. Fico imaginando como deveria ser a macarronada italiana sem o molho de tomate!). Assim, nesse ir-e-vir de jesuítas, colonizadores e conquistadores, plantas medicinais e alimentícias cruzaram o Atlântico em viagens de mão dupla, incrementando as mesas e sincretizando sabores.
E cá estamos nós, quatrocentos e poucos anos depois dessas primeiras experiências culinário-culturais. O convite, agora, é para que façamos uma pequena análise do que geralmente consumidos aqui no Sudeste(3). Vamos começar com as frutas. Boa parte dos alimentos frugais que geralmente consumidos não é, definitivamente, nativa do Brasil: pêras, maçãs, uvas, laranjas, mexericas, bergamotas, mangas, abacaxis, melancias, melões, goiabas, pêssegos, abacates, limões, nectarinas, figos, morangos, nêsperas, ameixas pretas, jabuticabas, cocos, bananas... Desta lista, você saberia dizer quantas são genuinamente brasileiras ou sul-americanas? Apenas as goiabas, as jabuticabas e os abacates, acredite se quiser. O cardápio de frutas aqui no Sudeste é majoritariamente europeu (pêras, maçãs, uvas, pêssegos, nectarinas, morangos), com salpicos de frutas oriundas do Oriente Médio (melões, melancias, mexericas, limões, laranjas, bergamotas) e da Ásia (mangas, abacaxis, cocos, bananas, figos, ameixas pretas). É, caro leitor, nem a banana escapou da lista dos importados! A verdade é que muitas mudas trazidas pelos jesuítas da África, Europa e Ásia encontraram condições favoráveis para sobrevivência aqui no Brasil. Algumas tornaram-se espontâneas, portanto muita gente acha que o coco, a manga e a banana, por exemplo, são frutas tipicamente brasileiras(4).
Se analisarmos o que comemos como “saladas” (hortaliças, legumes e raízes), a lista dos importados também não é pequena. Pasme: alface, acelga, rúcula, beterraba, cenoura, agrião, salsa, salsinha, tomilho, manjericão, manjerona, alecrim, gengibre, nabo, rabanete, chicória não são nativos do Brasil! Ah, sim, você come inhame, cará e mandioca? Bem, estes são definitivamente made in Brazil. Também são americanos (não necessariamente brasileiros) o tomate e a batata (que, muito indevidamente, foi batizada de “batata-inglesa”... os ingleses nunca comeram batatas antes do século XVI! Para pensar: como deveria ser a comida alemã, que atualmente combina batata com praticamente qualquer coisa, há quinhentos anos? Einsbein(5) com purê de batata não estaria no menu alemão, certamente...). Cereais? Bem, aqui caímos, então, em um cosmo totalmente xenófobo: não são do Brasil o trigo, o centeio, o arroz, o milho (apesar de ser sul-americano), a aveia e o sorgo. Quer arrematar com um bom cafezinho? É, a Coffea arabica, como o próprio nome indica, não nasceu aqui em terras tupiniquins.
Em plena época natalina, nada mais apropriado que nozes, avelãs, damascos, uvas-passa... Tudo exótico, importado, para combinar com Santa Claus, tão genuinamente brasileiro quanto o bacalhau, o salmão e o peru. Se você quiser optar por uma ceia com produtos brasílicos de origem, pode incluir açaí, cupuaçu, umbu, cajá e carne de cateto. Todos estes com o selo made in Brazil genuíno. E... bon apetitte!
Notas:
(1) A vinda dos primeiros portugueses ao Brasil e, particularmente, a chegada dos jesuítas em meados do século XVI, foram fatores importantes para o trânsito de alimentos entre Europa, África e Ásia e o continente americano.(2) Algumas referências interessantes a este respeito podem ser encontradas em vários relatos. Selecionei a seguinte bibliografia:
BELTRAN, Maria Helena Roxo. O europeu diante da Flora do Novo Mundo. In: ALFONSO-GOLDFARB, Ana Maria; MAIA, C. A. (org.). História da Ciência: o mapa do conhecimento. Rio de Janeiro/São Paulo: Expressão e Cultura/Edusp, 1995 (Coleção América: Raízes e Trajetórias, vol. 2);
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997;
DEAN, Warren. A botânica e a política imperial: introdução e adaptação de plantas no Brasil colonial e imperial. São Paulo: IEA/USP, 1992 (Série História das Ideologias e Mentalidades, Coleção Documentos, vol. 1);
FATUMBI, Pierre Verger. Ewé: o uso das plantas na sociedade iorubá. São Paulo: Companhia das Letras, 1995;
FRAGOSO, J. Discurso de las cosas aromáticas, árboles y frutales, y de otras muchas medicinas simples que se traen de la India Oriental, y que sirven al uso de la medicina. Madri: Francisco Sánchez, 1572;
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980;
SANTOS, Fernando Santiago dos. A Botânica no livro didático do Ensino Médio: apenas memorização de nomes?. In: SILVA, Cibelle Cestino (Org.). Estudos de História e Filosofia das Ciências: subsídios para aplicação no Ensino. 1 ed. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2006.
SOUSA, J. S. de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 2001 (Coleção Reconquista do Brasil, 2ª série, v. 221);
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
(3) A região Sudeste foi a única considerada neste artigo por ser o local de nascimento e habitação do autor, que não ousaria falar da culinária de outras partes deste imenso país.(4) Em Botânica, a palavra espontânea designa plantas que, adaptadas a um ambiente propício e em clima favorável, conseguem desenvolver-se e crescer de forma natural, embora estas plantas possam ser exóticas (ou seja, não-nativas do local).
(5) Este é um prato alemão à base de joelho de porco, normalmente acompanhado de purê de batatas ou grão de bico.
Um comentário:
Pois bem, somos “brasileiros de natureza européia”, europeus por falta de opção, europeus por termos perdido nossas raízes, ou melhor, por terem nos tirados na bala. Somos europeus por nossos antepassados não conhecerem pólvora, carabina, mosquetão, bacamarte... Somos hoje europeus por sermos pacíficos e permitirmos nos fazerem rotos. Somos miscigenados por ignorância em acreditar em boas vestes e títulos sem escrúpulos. Somos europeus por uma colonização imposta, por costumes impostos e por sermos impostos até hoje a bancar os idiotas.
Ainda hoje abrimos nossas portas e nos fazemos anfitriões para qualquer “gringo” que adentra nossa esfera.... Ainda hoje trocamos cultura de raiz por míseros valores descritos sobre papéis. Culpados por ignorância em não saber ou conhecer o mínimo pedaço de chão que o cerca. Culpados são por achar e valorizar os costumes alheios mais ricos que os nossos.
Somos hoje brasileiros europeus por permitirmos sobre nossos narizes a biopirataria e patentes de espécies de nossa região, voltar como fármacos...
A incapacidade e a falta de bom senso nos fazem os políticos da boa vizinhança, os primos pobres sobre tanta riqueza, invejadas por aqueles que já não mais desfrutam em sua terra, por sua ganância e afronta à Natureza de suas regiões.
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